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Crônicas Buritisenses
Crônicas Buritisenses

Inclusão e Exclusão

            Chegou meio sem querer querendo e entrou pelo portão do fundo. Estava magérrima, muita fome e sofrimento. Viu que ali tinha comida. Apesar do medo, a fome era maior.  Comeu. Ficaram com pena ao ver com que voracidade ia devorando as migalhas. Deram mais um pouquinho. Não muito para não acostumar.

            No outro dia ela veio de novo. No mesmo horário. Novamente deram-lhe comida. Fartou-se. Deitou num cantinho e tirou um cochilo ali mesmo. Aos poucos as crianças foram se acostumando com a presença dela ali. Aos poucos ela foi demorando mais também naquele ambiente. Sempre comia, depois se esparramava nos corredores e tirava sua soneca. Ninguém a incomodava. Não mais a enxotavam e nem a chutavam. Ela até brincava com os menores.

            Houve um tempo que ela demorou a aparecer. Sentiram falta dela. Será que está muito doente ou morreu? Ninguém sabia onde morava. Nem o nome dela. Apenas foi chegando e foi ficando.

            Depois de alguns dias ela apareceu. Seus peitos estavam fartos. Sinal que estava amamentando. Comeu mais. Mas não tirou seu cochilo costumeiro ali. Saiu por um buraco no muro. Foi-se.

            E assim se comportou durante algumas poucas semanas: vinha, comia e ia embora pelo buraco do muro. Não ficava pra brincar com os pequenos e nem para tirar um cochilo. Todos estranharam aquele comportamento.

            Houve uma tarde que ela veio faceira, alegre. Mas não veio só. Trouxe seus quatros filhotes. Todos bem gordinhos, bem alimentados. A princípio, suas crias ficaram assustadas com o vai e vem nos corredores e com a gritaria das crianças. Mas foram tomando confiança e daí a pouco estavam brincando com os meninos e meninas. Logo os filhotes sumiram. Não vieram mais. Desfilhada ficou.

            Alguém reclamou da presença dela pelos corredores. Não queriam vê-la ali brincando com as crianças. “Ela pode passar doença para nossos filhos”. Tentaram então barrá-la no portão. Ela passava pelo buraco do muro. Taparam o buraco do muro.

            Ela chegava até o portão. Sabia que não entraria, mas ficava ali sentada próximo ao portão da frente e cada criança que passava para entrar na escola, ela abanava a cauda como se dissesse: “Oi, como você está hoje? Boa aula!”.  E, com olhos compridos e orelhas em pé, espiava para o pátio onde os pequenos corriam e gritavam se divertindo.

            E assim foram seus últimos dias, chegando sempre ao portão sem poder entrar. Sem filhos e sem escola.

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O Homem Colorido

            Nunca soube o nome dele. Era conhecido de todos e por todos. Também não poderia passar despercebido. Cabelos compridos, trajava sempre uma calça de tergal laranja ou vermelha, presa à cintura por um barbante, uma camisa manga comprida (todas vezes que o vi estava sempre com camisa de manga comprida e bem colorida, apesar do calor) com estampas bem vivas. No rosto um sorriso falto de dentes, nos olhos um enorme óculos escuros no qual a gente se via no reflexo. Os óculos, de tão velhos, já haviam perdido as hastes e eram presos à cabeça  por um elástico encardido, que funcionava também como uma tiara.

            Morava no fim duma rua esburacada, onde a capoeira já crescia, em um barraco, barraco mesmo, feito de refugos de madeira, de chão cru, coberto ora com telhas de amianto ora com tabuinhas. Não tinha energia elétrica nem água encanada. Tinha um gatinho amarelo, magrelo, acho que numa tentativa futura de espantar os outros inquilinos, os ratos. Não creio que fosse esse o propósito do Colorido. Vai que o gatinho bateu ali também fugido de uma decepção e se identificou, na verdade se reconheceram homem e animal na mesma dimensão. Os ratos, apenas companheiros a mais na velha cabana.

            Se tinha parentes, estes não o visitavam. Mas que parente visitaria outro numa situação de miséria assim? Que pão repartiriam? Filhos? Nunca soube. Apesar de perceber nele uma graça cômica e até ridícula de galã. Mas ele estava sempre só.

            Sempre pela manhã ele passava pela rua de casa, descia até uma serraria. Daí a pouco voltava com um feixe de lenha nos ombros. Outras vezes, trazia uma dessas carroças de madeira que ele mesmo puxava. Sempre assoviando uma música do tempo do epa... Acho que de Leo Canhoto e Robertinho ou Jacó e Jacozinho. Nunca conseguimos decifrar aquela melodia. Fazia carvão. Vendia o carvão. Depois se aninhava no barraco junto com o gatinho e os ratos.

            Outro dia o encontrei caminhando pelo centro da cidade, com seus trajes típicos, porém com um enorme toca-fitas apoiado nos ombros, ouvindo forró. Ia caminhando alheio ao olhar curioso da gente que ria e cochichavam a respeito da excentricidade dele. Seguia seu caminho, seu som. Feliz. Quem dele mangava, não compreendia. Nunca o vi bêbado.

            Aí a cidade cresceu. Os problemas cresceram e essa figura desapareceu. Será que morreu? O barraco caiu. Quem sabe fugiu dos rumores e horrores duma cidade que não dá sossego para os sossegados. Foi expulso? Talvez pressionado.

            De repente foi colorir outro buraco numa rua qualquer de uma cidade por aí.

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Malas e Bolsas

            O ônibus saía às 15 horas. Não podia perder o horário. As quatorze horas o menino e a sua família lá estavam em um dia qualquer de junho de 96. Sol quente, um movimento tremendo de passageiros e cargas. Gritos de taxistas por passageiros, choro de crianças e motores se fundiam  ao zum zum das conversas .

            Um cheiro de salgados fritos em gordura envelhecida e fumaça de cigarros impregnavam o ar, provocando caretas e náuseas nos estômagos doentes e mesmos os mais fortes não resistiam tamanha combinação olfativa. Do outro lado, já fora do perímetro da rodoviária enxames de abelhas incomodavam e se acomodavam nos bagaços de cana da garapeira. Garapa geladinha com pastel dizem alguns que é uma delícia, além disso, conta o conselho dos mais velhos, põe a malária para fora de quem a tem.

            Engraxates sujos e abatidos com suas caixas publicitárias de políticos e comércios abordavam pares de sapatos desbotados e maus cuidados. Aos resistentes, insistiam. Uns trocados entre tantos era uma grande façanha.

            O calor aumentava e a turba também. O menino observava, sentado encolhido no banco, as malas e bolsas, sacos e sacolas e caixas e caixotes.  As coisas ali tinham um sentido diferente. O que eram as malas guardadas nos armários em casa? E as bolsas? Trecos sem serventia ocupadores de espaço. Na rodoviária recebiam personalidade, se tornavam importantes, eram o próprio viajante. Carregavam segredos, intimidades, coisas que o menino nunca saberia.

            O ônibus chegou. Logo um tumulto iniciou na porta dele. Todos querendo entrar o mesmo tempo para pegar os melhores lugares. Dentro de um ônibus lotado os melhores lugares são as primeiras poltronas e à janela. As pessoas se apertavam, se empurravam, se comprimiam e oprimiam. Nessa ânsia não haviam velhos, damas, grávidas e nem deficientes. Todos eram tudo. O menino ainda não entendia, por isso foi um dos últimos a embarcar.

            Dentro do ônibus, uma profusão de odores das mais variadas nuance ia do ácido das sudoreses individuais ao adocicado das frutas nas sacolas. Além disso, tinha o cheiro dilacerante dos cigarros e do álcool transpirado, inebriante... Talvez por isso o menino adormeceu e não viu as matas e riachos singrando os pastos, não contemplou as verdejantes lavouras de café... Nem mesmo quando o ônibus atravessou as duas pontes de madeira do Candeia.

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No caminho tinha um buraco

 

            Foi até a janela mais uma vez na esperança de vê-lo apontar na rua. Nada. A rua estava escura e vazia, mas dava pra ver as obras de canalização das águas da chuva que estavam sendo feitas pela prefeitura através de um pouco de luz que escapava das casas. Por causa dessas obras havia algumas bocas de bueiros bem no meio das ruas que eram protegidas por umas fitas de isolamento amarelas.

            Voltou e sentou-se no sofá. Ele não podia demorar tanto assim. Olhou as horas no relógio vermelho pendurado na parede: oito e dez. O combinado era que ele chegasse sempre às oito horas da noite, pois às dez horas ele tinha que vazar. Eram as ordens do velho, pai dela.

            Pegou um livro na estante. Folheou. Guardou o livro. Resolveu ouvir uma música. Desistiu. “Quando ele chegar vai ouvir umas poucas e boas. Deixa estar.” A menina levantou se e foi novamente até a janela. Olhou para a rua escura. Uns cachorros brincavam com uma sacola velha. Nenhum ser humano por ali. Oito e meia da noite. Nada. Saiu até o portão. O pai a chamou para dentro, que lugar de moça de família é dentro de casa e não se amostrando na rua.

            “Se ele não tiver uma boa desculpa, ele vai ver só. Não admito essa falta de respeito. Homem que não cumpre a palavra, é que me faltava agora. Já está me enrolando assim, imagina quando casarmos. Não vou deixar barato, não vou mesmo. Olha se eu não terminar o namoro, oras.” A moça arrazoava consigo mesma. Bem que era a primeira vez que ele se atrasava. Chegava sempre adiantado. O que teria acontecido?

            Foi até o quarto. Retocou a maquiagem, mais um pouquinho de perfume, alinhou novamente os cabelos negros com a escova que ganhara da prima. Mirou-se diante do espelho. Será que estava engordando? Não. Ainda não. Dizem que as mulheres quando se tornam mães engordam. Outras secam. Preferiria secar a inchar. Voltou para a sala. O pai estava na varanda da frente, folgado na sua cadeira de balanço bem junto à janela da sala. Toda vez que o noivo dela vinha, ele ficava ali, sentadão esparramado. Só levantava quando o relógio marcava dez horas.

 

            Ele ia muito faceiro, feliz e ligeiro pedalando sua bicicleta. Há seis meses a namorava. No terceiro mês de namoro noivaram. Já tinham planos para o casamento. Não demoraria. Logo após a colheita do café. O futuro sogro era um senhor rabugento, mas o amor tem seu preço. No entanto a sogra era um amor. Falava baixinho, trazia sempre docinhos ou suco acompanhado com biscoitos que ela mesma fazia. O velho rabugento sempre resmungava lá da varanda: “Num ceva não, muié”.

            Gostava sempre de chegar um pouquinho mais cedo porque o velho não permitia que ele ficasse nem um minuto sequer depois das dez horas. Quando o relógio da parede ia dando dez horas, o velho saía sei lá de onde e vinha sentar-se bem do lado dele e mandava a menina arrumar a cama pra dormir. Já sabia que era pra se despedir que ela não voltava mais na sala e nem adiantava puxar papo com o velho.

            Teve um dia que até desconfiou que o velho estivesse adiantando aquele relógio da parede. As horas passaram tão rápido. O trem, sô!

            De repente um vão. A bicicleta engolida por um buraco bem no meio da rua. Uma pancada forte na cabeça. Tudo escureceu e sumiu.

 

            Oito e quarenta e cinco. Alguém bateu palmas no portão. O coração dela disparou. “É ele. Ufa, até que enfim, já estava ficando sem paciência. Será que devo falar o que planejei. Não, é melhor deixar que ele fale primeiro. Quem sabe ele tem uma razão para essa demora.”

            Chamou no portão. Não era a voz dele. Ela conhecia bem o timbre da voz do namorado, mesmo se ele estivesse rouco ela o reconheceria pela voz. Uma onda de tristeza e decepção varreu-lhe o coração. A mãe foi atender quem estava no portão.

            O rapaz fora encontrado desmaiado por populares dentro de um dos bueiros cavados no meio da rua pela prefeitura. Foi necessário chamar o corpo de bombeiros para retirá-lo de entre as ferragens da bicicleta amarela que ele pedalava a toda por hora. Um acidente. De acordo com o médico, ele sofrera traumatismo craniano e por isso estava sendo transferido para a capital.

            Naquela noite ele não viria ver a noiva. E nem nas outras seguintes.

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A Pasteleira

            Era assim que se referiam a ela. Era uma senhora que aparentava uns quarenta para cinquenta anos. Sua vida era de serraria em serraria vendendo pastéis, coxinhas e suco. Carregava duas enormes caixas de isopor, onde levava os salgados e sucos, um enorme guarda chuva preto que a protegia do sol causticante no verão e das chuvas torrenciais no inverno buritisense e uma bolsa onde carregava os vidros de pimenta, a caneta e a caderneta para anotar o nome dos fregueses, que não eram poucos.

             Os salgados e sucos eram feitos por ela e o marido.

            Chegava sempre no horário do café, entre as oito e meia e nove e meia da manhã e a tarde entre as três e quatro horas. Os donos e gerentes das serrarias podiam não aprovar o seu tráfego pelo pátio de suas madeireiras, mas toleravam ao ver tanta resignação e luta naquele semblante cansado e humilde. Inclusive havia entre eles aqueles que autorizavam o desconto do valor da conta no salário de funcionários que tentavam enrolar a pasteleira.

            Quando ela aparecia no portão da serraria, todos já ficavam na expectativa de ser o primeiro, pois geralmente os salgados de baixo estavam amassados ou ensopados de óleo. Então quando a firma dava o sinal do lanche, era uma correria louca por sobre as madeiras e máquinas para chegar à frente dos outros clientes.

            Alguns ficavam com pena dela. Outros reprovavam a atitude do marido que punha esposa a perambular pela cidade e chácara naquela situação para vender salgadinhos. Mas enquanto ela estava pelas madeireiras a vender seus salgados, o marido dela estava pelos sítios e chácaras à procura de mandioca e outros ingredientes. Buscava a mandioca, descascava, cozinhava, fazia a massa...

            Cruel mesmo eram aqueles fregueses que enterravam a cara a comprar salgados e depois sumia, saía do emprego e o calote estava dado naquela senhora. Ela perdeu muita conta, pois naquela época era muito grande a rotatividade de funcionário num madeireira, pois havia muita oferta de emprego. Então uma pessoa podia estar trabalhando aqui hoje, e por qualquer coisinha poderia sair do emprego que amanhã mesmo ele estaria empregado em outra. Às vezes ela encontrava alguns em outras serrarias pelas quais ela passava.

            Alguns empregadores até usavam a opinião dela para contratar algum funcionário vindo de outra serraria ou mesmo para saber do procedimento de seus funcionários.

            Pouco a pouco ela foi perdendo a pontualidade de suas frequências às serrarias. Houve um tempo em que ficou mais de mês sem visitá-las. Estava doente. Reumatismo. Depois reapareceu. Mas não trazia mais as caixas de isopor carregadas de salgados e nem o velho guarda-chuva preto veio numa cadeira de rodas.

            O óleo esfriou na frigideira, o fogo se apagou na fornalha. Acabou-se os pastéis na hora do café.

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