A lenda da Cachoeira da Formosa
Descendo o rio Candeia, aproximadamente trinta quilômetros de Buritis, está a Cachoeira da Formosa ou Formosinha, para os mais íntimos. A frequência de pessoas e animais aí é grande. Aqueles por diversão (pescaria, banho e outras coisas mais), estes por necessidade (beber água, fugir daqueles, transportar aqueles). O certo que toda semana há gente ali.
Mas nem sempre foi assim. Há muitos e muitos anos atrás habitava essa região um povo nativo e que, por ser nativo aqui no Brasil, Rondônia e Buritis, foram denominados índios. Nessa tribo havia valentes guerreiros com seus arcos e flechas, curandeiros fazedores de rezas e chás com folhas, cascas, sementes, raízes, enfim tudo que ele quisesse incluir na receita. Eram os pajés. Hoje nós os temos em nossa cidade conhecidos como “Raízeiros”. Nessa tribo também havia lindas jovens índias solteiras, cunhã porã. Durante muitas luas esse povo pescou e se banhou nessa parte sagrada do rio. Nas tardes quentes essa tribo descia até o Candeia. Seus curumins brincavam nos bancos de areias abaixo da queda do véu de água, os valentes purificavam suas armas sobre as rochas sagradas revestidas de lodo no fundo sob a água, as virgens de cabelos longos e negros e os mancebos mergulhavam o rio e os velhos desfiavam seus conselhos às margens do rio, sob a hipnose da queda da água e suas trovoadas.
Mas pouco a pouco esse mundo selvagem foi sendo desbravado pelos seringueiros e suas carabinas mais selvagens ainda, que subiam o rio sangrando as seringueiras nativas, esparsa, em busca do látex nessa imensidão verde. A tribo foi se afastando fugindo dos selvagens destruidores das tradições dos ancestrais, se alongando, perdendo-se, já que então apareceram as marcações, as derrubadas, posseiros, toreiros, madeireiros, madeireiras, fazendeiros e outra civilização se formou no berço do Candeia.
Conta-se que, certo dia à tardezinha, quando o sol já ia se escondendo por sobre as árvores, um seringueiro se lavava na prainha do rio e, de repente, percebeu que estava sendo observado por alguém de cima das pedras que despontavam do volume da cachoeira. Ao olhar bem, ele viu uma mui bela índia sentada, da maneira que as sereias sentam, sobre uma pedra, no meio das águas. Ele ficou encantado com tanta formosura e só conseguiu parar de contemplar a jovem quando, junto com os raios de sol, ela sumiu.
Daí em diante esse seringueiro não teve mais sossego. A vida dele era perambular pelas margens do rio ou sobre a cachoeira, por entre as enormes Lages de pedras na esperança de contemplar virgem tão formosa. Até que um dia, dizem, ele estava perto da cachoeira e viu novamente a índia, e ela chamou por ele e ele foi... Escorregou no lodo das rochas, caiu na correnteza e bateu com a cabeça nas pedras lá embaixo. Morreu. Tempos depois encontraram o corpo dele algumas dezenas de metros da cachoeira com um sorrisão no rosto cadavérico.
Ainda muitos homens vão dessa pra outra em tombos ou mergulhos na cachoeira do Candeia, pois acredita-se que são encantados pela Formosa Índia da cachoeira... A cachoeira da Formosa. Formosinha, para os íntimos.
Sobrado Assombrado
Durante algum tempo foi apenas uma data vazia no setor Três, próximo à uma escola estadual, cheia de capins a arbustos espinhentos (aqui os lotes urbanos são chamados de datas). Mas, com o crescimento da cidade, começou a ser construída nessa data uma linda casa de dois pisos.
Logo, no início da obra, os pedreiros começaram a observar movimentos estranhos nos cômodos em construção. Sombras passeavam de um lado para o outro, ruídos de crianças brincando. Os construtores imaginaram que aqueles sons fossem produzidos pelas crianças da vizinhança e por isso não se importaram com aquilo.
Porém certo dia, um dos pedreiros ficou um pouquinho mais tarde rebocando uma parede, pois não queria perder a massa. Iniciou seu trabalho com rapidez, já que não queria chegar tarde em casa porque sua patroa ficaria uma fera. Pegava massa com a colher e lançava na parede, acertava, pegava mais massa... Foi então que ouviu ruídos de risadas e murmúrios que mais pareciam grunhidos que vinham dos quartos do piso superior.
“Mas será que tem criança brincando ali em cima? Impossível!” Pensou.
Como o ruído o estava incomodando, resolveu dar uma averiguada lá em cima.
Para não assustar os brejeiros, subiu pé por pé, até o andar de cima. Lá em cima havia uma pequena sala e dela saía um corredor que dava acesso aos quartos.
O barulho vinha do ultimo quarto da esquerda. Então, bem devagarzinho, foi se aproximando da entrada do referido. À medida que ele ia se aproximando da porta do quarto os ruídos iam se enfraquecendo e , quando o pedreiro entrou no quarto, não ouviu e nem viu nada, senão tijolos quebrados e algumas tábuas velhas num canto.
Ficou surpreso, pois acreditava piamente que o barulho vinha dali. Ainda estava considerando isso quando ouviu alguém rebocando a parede lá embaixo. Ele pensou que devia ser algum colega de trabalho que tinha voltado.
O pedreiro desceu falando alto sobre o estranho acontecimento nos quartos de cima e qual não foi a sua surpresa quando percebeu que não tinha ninguém ali embaixo. Meio sem entender nada ele ainda correu até a rua para ver se vinha alguém, mas a rua estava vazia. Apenas uma mulher catava a roupa do varal lá do outro lado da rua.
Voltou para dentro do sobradinho e procurou pelos cômodos imaginando que possivelmente um colega estava querendo zoá-lo. Não encontrou ninguém.
“Devo estar caducando”.
Recomeçou seu trabalho. Estava assim quando novamente os sorrisos e grunhidos começaram novamente, agora no quarto bem pertinho da sala onde ele estava.
O pedreiro parou o trabalho. Os ruídos também cessaram. Quando ele retomou a labuta, os grunhidos e risadas também. Foi até o quarto, viu sombras que subiam e desciam das paredes. Nada mais. Não quis saber de meia conversa. Juntou seus apetrechos saiu sem nem olhar para trás.
A construção até hoje não foi concluída. Um lado do telhado até já caiu. Cercaram o sobrado com uma cerca de madeira velha para que ninguém entrasse lá. Virou moradia de corujas e morcegos. O capim e carrapicho tomou conta do quintal. Dizem que quando passa altas horas da noite lá, é possível ouvir risos e gritos infantis saindo de um dos quartos do andar de cima.
O pé de limão
Era um a pé de limão galego afastado num canto do terreiro sem cercas que ficava do lado esquerdo de quem chegava à frente da casa. Era Viçoso. Logo atrás dele seguia uma vegetação arbustiva com ralos pés de capins e moitas de colonião que se estendiam até o pátio da outra serraria que ficava depois de uma grota encharcada.
A casa era velha, de madeira bruta e sem pintar. Sala, cozinha, dois quartos. Sem energia elétrica e nem água encanada. O banheiro, uma casinha típica, conhecida como mictório ficava ao fundo do terreiro, já na encosta da gruta. Ao fundo do terreiro, mais capoeira e lá embaixo seguia um fio de água que ia alimentar uma lagoa de águas barrentas. Um brejão nascia dali.
Pois certa noite a mãe acordou com o chamado da filha que queria ir ao banheiro. A mãe se levantou e as duas seguiram para o banheiro, saindo pela porta da cozinha. Já se preparavam para voltar e entrar na casa quando ouviram um choro de bebê lá na frente.
- Está ouvindo, mãe? Tem um neném chorando.
- Estou sim. Deve ser alguém passando lá na estrada.
Mas o choro estava forte e elas resolveram averiguar quem estava por ali com uma criança. Quando chegaram a frente da casa, perceberam que o som via de debaixo do pé de limão galego. A noite estava clara por causa da lua, mas debaixo do limoeiro havia sombras.
- Será que alguém deixou um neném aqui? Murmurou a mãe e aproximaram-se do pé de limão e procurar. O choro cessou. Procuraram e não encontraram nada. Confusas, resolveram voltar. Nisso o choro infantil iniciou lá debaixo do pé de limão galego.
- Vamos voltar lá, mãe. Talvez ele esteja pendurado nos galhos do pé de limão. Quando foram aproximando, o choro cessou. A mãe parou. A filha parou. Um silêncio fúnebre se instalou. Segurando fortemente o braço da filha a mãe voltou para dentro da casa e fechou a porta. Só então a filha perguntou:
- O que foi, mãe?
- Nada não, vá dormir.
- Mas, e o neném?
- Aquilo não é neném, minha filha. Era uma coruja.
Aquela explicação convenceu a menina que foi para o quarto e dormiu. A mãe, assombrada, não conseguia dormir.
Sem sono, pensando no estranho acontecimento, observava o homem ali deitado, roncando, convalescendo de uma tiriça (icterícia), alheio ao medo que assaltara o coração dela. De repente, aquele choro pavoroso começou debaixo do pé de limão. E cada vez ia ficando mais forte, insistente.
A mulher nem quis saber se o homem estava doente ou não, acordou-o e disse:
- Ouça. Tem um troço chorando debaixo do pé de limão galego, e não é de hoje.
- Deve ser alguém passando lá na estrada, mulher.
- Não é não. Nossa filha e eu fomos até lá e ele se cala. A gente volta e ele recomeça. Isso não é normal não.
O homem ficou ouvindo aquele choro enjoado. Pegou uma Bíblia e começo a lê-la. Daí a pouco aquele choro se afastando dali, como se estivesse sendo carregado por alguém. Chorou pelo meio dos capins e arbustos, chorou na grota encharcada, chorou bem fraquinho... Sumiu.
Só então, a mulher dormiu.
A latomia
De repente os cachorros começavam a latir nervosos. E isso acontecia logo após uma hora da manhã. Começava lá na esquina da rua e vinha descendo. Passavam defronte a casa e desciam a ladeira com sua balbúrdia até lá no fim da rua, já próximo ao córrego São Domingo. Quando então a cachorrada fervia a ganir e chorar como se estivessem apanhando. Logo que aquela barulheira começava, o moço nem conseguia mais dormir.
Cansado daquele piseiro todas as noites, o rapaz se propôs a dar um basta naquela baderna toda. Por isso preparou um chicote comprido e deixou no jeito, pendurado na parede por sobre a sua cama. Preparou uma lanterna à pilha, assim era fácil localizar o instrumento logo que a farra canina começasse, visto que na casa não havia luz elétrica, nem mesmo na rua. O plano era fazer aqueles cachorros pararem ali mesmo.
Sendo assim, deitou-se para tirar um cochilo. Já passavam das doze e meia da noite quando a latomia começou. O moço levantou e acendeu a lanterna, pegou o chicote. Abriu a porta e observou a quantidade de cães que vinha descendo a rua. Umas duas dezenas mais ou menos. Era muito cachorro. Mas o que chamou a atenção do jovem foi o que eles vinham acuando. Um bode branco, do tamanho de um jumento, com chifres retorcidos, olhos vermelhos como brasas vivas, ia andando muito tranquilamente e ao passar em frente da casa do mancebo deu uma olhadinha para o rapaz que estremeceu nas bases. Atrás, a mantilha ia com a língua pra fora, numa desembalada carreira e, mesmo assim, não conseguia apanhar aquele animal.
O jovem ficou indeciso se seguia aquilo ou se deixava para quando amanhecesse. Sabia que nas margens do rio não havia nada de estranho, pois todos frequentavam aquelas paragens para tomar banho e pescar.
Resolveu e saiu logo atrás dos cachorros. Foi descendo a rua até o igarapé onde a cachorrada começava o seus ganidos e choros. Desceu o barranco, com cautela. Os cachorros já estavam voltando, todos com as orelhas murchas e o rabinho entre as pernas, molhados. O rapaz chegou à beira do São Domingo. Olhou às margens e não viu sinal algum daquela aparição medonha que os cães perseguiram. Nem dentro do rio, pois imaginou que haviam caído no rio. Nada.
Porém quando se levantou e vinha subindo o barranco percebeu que alguma coisa o observava do outro lado do rio. Um arrepio subiu pela espinha até o alto da cabeça quando percebeu por entre a vegetação o baita bode branco, com os olhos vermelhos como uma brasa, o espiando. Não sabia se corria ou se gritava... Ficou ali hipnotizado olhando aquela criatura chifruda.
O bicho veio caminhando para o lado dele. Veio flutuando por cima das águas do córrego, como um fantasma. Chegou-se bem perto do rapaz. O moço tentou gritar, mas só gemia, começou a sentir um frio tremendo que tremia como uma vara verde. Tentou correr, mas suas pernas não mexiam. O bode chegou bem pertinho dele e disse:
- Já é a hora. Vamos ver se você é mesmo corajoso. – Deu-lhe uma cabeçada.
O rapaz acordou num sobressalto. Estava suado, cansado. “Vixe, que pesadelo eu tive, arre égua”. Pensou A latomia começara lá na esquina. Pegou a lanterna. Acendeu-a e juntou o chicote. Quando abriu a porta viu o baita bode branco descendo a rua e a cachorrada, do jeitinho do sonho. Antes que o bode o mirasse, o jovem fechou a porta, apagou a lanterna e se jogou na cama se enrolando todinho da cabeça aos pés, com chicote e tudo no cobertor.
Daí a pouco, ouviu-se os gritos e ganidos dos cachorros apanhando no córrego São Domingo.
A Serraria
Quem passava pela estrada ainda ouvia ruídos que vinha da serraria e do escritório amarelo com janelas de vidro debaixo daquele tanto de mangueiras e biribazeiros. Eram pancadas fortes ou assovios longos. Era uma serraria movida por uma caldeira e que ficava alguns quilômetros do centro urbano da cidade. Depois passou a rede elétrica e a caldeira se aposentou. Os limites dessa serraria era a estrada de um lado e um pântano de águas rasas e barrentas cobertas por vegetação como o bico-de-pato. Nos limites da serraria ficavam o escritório, coberto por enormes pés de mangas comum e do tipo manga coquinho, e uma casa de madeira e forrada próximos à estrada, em cujo quintal havia um enorme pé de cajá-manga e uma carreira de laranjeiras numa das laterais da cerca. Já no fundo próximo á lagoa pantanosa havia mais três casas, sendo uma delas bem pequena.
Não se sabe por que, mas a serraria fechou e seus empregados foram embora. Talvez a discordância entre os sócio tenha motivado a sua falência.
Para evitar que alguns instrumentos da serraria fossem vandalizados ou roubados, um dos sócios contratou um caseiro para morar ali, na casa perto da estrada e do escritório amarelo com janelas de vidro.
A casa da estrada era melhor que as outras, pois além de ser forrada e estar próximo da estrada, era de assoalho beneficiado e as janelas de vidro em basculante. Porém não tinha energia elétrica. Aliás, tanto a luz como o telefone foram cortados logo que a serraria encerrou suas atividades.
Poucos dias se passaram morando ali e fatos estranhos começaram a suceder. Numa noite o caseiro foi despertado pela mulher dele:
- Querido, acorde! Tem gente mexendo no escritório.
O caseiro levantou e foi bem devagarzinho até a janela da frente. Puxou a cortina e olhou. Não viu nada. A mulher se aproximou dele. De repente ouviram um barulho tremendo, como se alguém estivesse dentro do escritório derrubando as prateleiras no chão. - Vou lá ver. – disse o caseiro.
- De jeito nenhum. A gente nem sabe quem e quantos estão. Quando o dia clarear, você vai, agora não.
Ficaram ali por muito tempo tentando ver alguma coisa ou para se protegerem caso o invasor viesse incomodar a casa. Mas só ouviram mais pancadas dentro do escritório. Resolveram ir para o quarto e deitar, pois ficar ali não estava resolvendo nada mesmo.
Assim que o dia clareou o caseiro e a mulher foram até o escritório para levantar o tamanho do estrago e passar o relatório para o patrão. Cautelosos, abriram a porta da frente e foram entrando e observando. Estava tudo organizadinho. As prateleiras, livros, escrivaninha, cadeiras e poltronas tudo em seus devidos lugares. O casal se entreolhou confuso. Observaram as outras salas. Tudo tranquilo. Saíram e deram uma volta em torno do escritório. Tudo normal nada que indicasse que alguém estivera ali. Nada arrombado. Nada destruído.
Fecharam o escritório e foram cuidar de seus afazeres. Ela foi arrumar a casa e preparar o almoço e ele foi roçar envolta do barracão da serraria lá perto da lagoa.
Naquela tarde não tinha escurecido ainda, o casal estava sentado à mesa da cozinha jantando quando ouviram um barulho tremendo como se alguém estivesse quebrando todos os vidros das janelas do escritório. Levantaram rapidamente e chegaram até o escritório. Estava tudo calmo. Não havia nada de errado. As janelas estavam inteiras.
- Talvez fosse uma batida de carro lá na estrada, querida. – disse o caseiro. Foram até a estrada, mas não nem sinal de carro. Quando voltavam da estrada, viu um gurizinho afrodescendente sentado em um dos galhos baixos de uma mangueira olhando para eles. O casal parou e fitou o menino. Então ele pulou do galho e foi caminhando lentamente para o barracão da serraria. O caseiro e a mulher o foram seguindo de longe e quando chegaram à serraria não conseguiram mais ver o garoto, por mais que o procurassem.
Naquela noite, os barulhos ocorreram com mais intensidade lá no escritório e no barracão da serraria, mas o caseiro e a mulher não moveram um palmo de debaixo da coberta.
Dois dias depois o sócio da serraria procurava caseiro para tomar conta da propriedade.